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Tanto no fetichismo, quanto nos desvios sexuais de homens e mulheres, torna-se evidente a variedade de objetos nas manifestações do Amor. Essa é uma das provas da universalidade do Amor que podemos considerar como uma forma de energia cósmica ainda não pesquisada e conhecida pelas Ciências. A tese de João Evangelista: “Deus é Amor”, faz-nos lembrar esta expressão do Apóstolo Paulo: “Em Deus vivemos e nele nos movemos.” Preocupados com o amor humano, psicólogos e filósofos até hoje se interessaram quase exclusivamente com essa forma lírica e dramática do amor entre duas criaturas. Mas tanto na Filosofia Grega, quanto nas chamadas Filosofias Orientais, houve sempre grande preocupação do Amor como um elemento da Natureza que impregna todas as coisas e Todos os seres. No Ocidente, o domínio das Teologias, que se apossaram da inspiração grega para tratar do Amor em sentindo divino, parece haver impedido os grandes pensadores de se aprofundarem no assunto. As Teologias, seguindo o exemplo de Tertuliano, se apossaram do Amor por direito de usucapião. Era sempre arriscado mexer nessa questão. O Renascimento, por sua própria tendência, considerou o Amor em termos de poesia e fábula, encantando-se com os amores mitológicos dos deuses gregos e romanos. Os amores dos deuses eram semelhantes aos dos homens, e mulheres e vice-versa. Dessa maneira, o amor humano prevaleceu como única forma acessível à compreensão humana e possível de investigação científica ou filosófica.

A Psicanálise, nos primeiros desenvolvimentos da teoria freudiana, colocou o problema do Amor no plano patológico. E nesse plano ele permanece até hoje para a maioria das pessoas, não obstante o progresso do próprio Freud no tocante à sublimação e ao superego, bem como os avanços teóricos de alguns de seus discípulos, particularmente Jung. Não se pode acusar ninguém por isso. Freud teve de entrar no estudo e na pesquisa do Amor pelo subsolo da patologia. Por outro lado, o aspecto patológico é o mais dramático do Amor e o que mais toca o interesse humano. O Amor foi assim dividido em duas áreas: a da patologia e a do lirismo, geralmente confundindo-se essas áreas em vastas extensões. Os homens, recém libertos da concepção geocêntrica do planeta, caíram felizes no filocentrismo do Amor. Todas essas questões, e outras que delas se derivam, são temas para desenvolvimento futuro. Neste livro apenas as indicamos, para demonstrar, mesmo através de ligeiros reflexos, quanto se tem a pesquisar sobre o Amor. A sexualidade é uma forma de manifestação do Amor. Dessa maneira, o sexo quase conseguiu, nos domínios populares, apossar-se da palavra Amor e reduzir a manifestação desse poder exclusivamente às suas funções. Mais do que um abastardamento, isso foi uma profanação. Hoje se diz, num eufemismo derivado da língua italiana, “fazer amor”, para se referir. ao ato sexual. Na verdade, o Amor pode e deve estar presente no ato sexual, e também pode não estar, o que é mais comum. O Amor se manifesta na lei de gravidade que mantém a dinâmica celeste e em todas as formas de forças centrípetas, provocando união e fusão. Mas no homem as manifestações do Amor abrangem toda a sua estrutura vital, existencial e psicoafetiva. No tocante ao plano vital o Amor é sensação. Não obstante, o apego à sensação, reduzindo o poder do Amor a expressões periféricas, o deturpa e extingue. Em seu lugar surge a Paixão, que não é exaltação do Amor, como geralmente se diz, mas exaltação da sensualidade. Os crimes de amor nada têm a ver com o Amor, são conseqüências de desregramentos sensoriais, com perda do equilíbrio emocional e perturbações mentais. Matar por amor é um contra-senso. Uma criatura que ama não agride e nem fere o Ser amado, que é para ela objeto de veneração. O ciúme não procede do Amor, mas do apego animal ao plano sensorial. O animal é que ataca e fere por ciúme, nunca o homem, pois nele o Amor se manifesta em ternura, adoração e consciência do valor do Ser amado.

Para bem compreendermos isso precisamos voltar ao problema kardeciano do ser do corpo, no qual toda a pesada herança da animalidade ancestral se acha acumulada. As criaturas de sensibilidade humana não se deixam arrastar pelas paixões, que pertencem ao plano dos instintos. A libido freudiana é o reservatório profundo e escuro dos resíduos da animalidade. As sensações carnais se alimentam dessas energias vitais que se confundem com as aspirações transcendentes do Amor na mente conturbada que as toxinas da paixão desligam do controle superior da Razão. O Ser do Corpo sobrepuja o Ser Espiritual no controle da mente, desencadeando as forças do instinto. Os crimes resultantes dessa situação não decorrem ao Amor, mas precisamente do eclipse do Amor, produzido pelo retrocesso do homem às condições da sua ancestralidade animalesca. O crime passional pode ser definido como um caso de possessão infra-anímica, em que o criminoso é possuído por sua personalidade arcaica, em razão da falência de sua personalidade atual no delírio das sensações inferiores. Um caso de personalidade alternante a que o criminoso já se entregava  mais tempo do que se pode supor, sintonizado com os resíduos negativos de experiências vitais superadas.

É claro que a superação das experiências referentes a um dado tempo evolutivo não representa a sua destruição. Toda experiência representa uma aquisição do espírito, que passará a integrar as suas funções cognitivas em forma de categorias da intuição. Enquanto não desaparecerem os resíduos do inconsciente, a experiência superada pode ser reativada pela imprudência e o abuso. O princípio de que a Natureza não dá saltos, apesar da contestação marxista, permanece válida. A passagem do Ser, de um grau de evolução para outro, nunca é instantânea. Os pregoeiros da salvação imediata não conseguem exemplificar esse milagre em si mesmos. Os resíduos marcam o compasso de espera, necessário à assimilação total da experiência. Nessa espera, é possível que o Ser repita a experiência para poder absorvê-la com a devida segurança. Então se dará o aparente salto qualitativo, que na verdade representa uma transição lenta. O exemplo do relógio esclarece melhor este problema: quando as pancadas de uma determinada hora soam no relógio, surpreendendo-nos, isso acontece porque os ponteiros já fizeram o percurso de 60 minutos para bater a hora surpreendente. A complexidade da constituição humana, implicando as instâncias psicológicas da personalidade, as relações corpo-alma e a dinâmica dos processos conscienciais, não permite o desabrochar de flores sem raízes que levem a seiva através do caule. Todo esse processo minucioso depende do tempo. Por isso Hidegger advertiu que o espírito “cai do tempo”, e que este o acolhe para que ambos sejam afins no seu desenvolvimento. Cair no tempo é sair da espera e entrar na temporalidade para realizar-se a si mesmo.

A sexualidade é a condição que deve concretizar no tempo histórico o poder criador do homem e da mulher, na conjugação efetiva dos elementos biológicos, sob a regência do Amor. O sexo é o instrumento dessa realização genética que exige do casal humano a doação total dos poderes espirituais e corporais nele concentrados, no ato da criação.

Como nos parece mesquinha a concepção vulgar do sexo como mecanismo animal de natureza inferior! A mecânica sexual do gozo pelo gozo é um aviltamento da função genésica, cuja finalidade última é a encarnação do Ser, primeiro passo da ontogênese terrena. Nos casais evoluídos o ato sexual não se reduz ao prazer sensorial. Este é apenas a chispa do fogo vital que desencadeia todo o processo da criação humana. A mulher acolhe o homem em seu corpo e em sua alma sem a inútil agitação animalesca, e o homem a envolve no seu poder fecundante com a naturalidade e o êxtase do Sol a envolver a Terra para fecundá-la. Só a mesquinhez do vulgo, do populacho incapaz de compreender a grandeza de um ato criador poderia ter feito disso motivo de escândalo, malícia e pecado.

A expressão “o pecado do amor” é tão absurda quanto o ilogismo: “matar por amor”. Enquanto não formos capazes de discernir juízos opostos e continuarmos a confundi-los, não estaremos em condições de reformular nossa concepção do mundo.

Em “A Fonte”, Charles Moorgan faz Rupert, na hora da morte, perguntar a Jullie, que o traíra com Lewis: “Não o amaste apenas com o corpo?” Ela responde que não e acrescenta que nem ela nem Lewis o haviam feito por mal, mas por amor. Rupert voltara da guerra, mutilado. Seus olhos se voltaram para a mulher e para Lewis e declarou que não tinha ciúmes nem rancor, pois o amor de ambos não podia ser crime nem traição. Como poderia um homem possessivo, que considera a mulher como sua escrava, compreender e perdoar a traição em sua hora extrema? Mas Rupert era a antítese desse homem comum e boçal. Jullie e Lewis eram ingleses e se amavam com profunda reciprocidade. Rupert, alemão, interferira sem querer, sem o saber, no destino de ambos. Mas ao reconhecer a legitimidade daquele amor retirou-se em silêncio. Que direito teria ele para exprobar ou amaldiçoar aquela mulher? Não importavam as circunstâncias da guerra, da mutilação, da morte. O que interessava a Rupert era o respeito pelo Amor de ambos, por essa reciprocidade que ele não conseguira despertar em Jullie. Maior que a sua paixão pela jovem, que as circunstâncias haviam lançado em seus braços, maior que o conceito humano de honra e que todo o escândalo que o fato pudesse provocar no meio social, Rupert via, diante dele, após a fogueira do ódio e da bestialidade da guerra, a verdade de um Amor puro e profundo que a tudo desafiara para sustentar os seus direitos, a sua estranha dignidade que para o mundo era perfídia e desonra.

Os conceitos humanos variam segundo o nível das consciências. Quanto mais elas se elevam, aproximando-se dos arquétipos da espécie, mais se distanciam das normas sociais que decorrem de costumes e tradições. Essas variações levaram os sociólogos a negar a existência dos princípios morais superiores, pois se Moral vem de mores, costumes, e estes variam, parecia-lhes evidente que a Moral não provinha da Consciência, mas dos hábitos e costumes de cada meio social. Esqueciam-se de que os costumes resultam não só de exigências mesológicas, mas também de exigências concienciais. Hoje, graças a Bergson e outros filósofos da Moral, todos reconhecemos a ligação genética entre Consciência e Moral. Essa relação explica as variações da Moral, sua evolução histórica através de fases bem definidas e as razões profundas de sua influência no campo dos problemas sexuais.

No caso do triângulo amoroso Jullie, Lewis e Rupert a questão moral se coloca nos termos da legitimidade do Amor. Este é o critério supremo que não reconhece as normas da moral comum, tipicamente social. O caso é específico. Jullie havia sido aluna de Lewis na Inglaterra. Mudara-se muito jovem para a Holanda, em virtude do casamento de sua mãe viúva com um nobre holandês. Casara-se com Rupert, filósofo alemão, por conveniências de ordem familial e social. Na guerra, Rupert ausentou-se do Castelo de Enkendal e Jullie ficou sozinha. Lewis é preso na frente de batalha e posteriormente enviado a Enkendal, com dois companheiros, para ali permanecer como prisioneiro de honra. Seu reencontro com Jullie reacendeu em ambos o Amor aparentemente esquecido. Rupert, gravemente ferido e mutilado, enviava notícias de longe e os prognósticos a seu respeito eram os mais graves. Jullie e Lewis não resistem à solidão no velho Castelo e entregam-se aos anseios recíprocos. Rupert volta a Enkendal para morrer e Jullie não tem coragem de lhe revelar o que acontecera. Mas sua consciência a leva a contar-lhe a verdade, que ele já percebera, compreendendo que realmente interferira no destino de ambos com seu amor por Jullie. Todo esse conjunto de justificativas naturais, entretanto, não impediriam a tragédia passional, se o caso não passasse entre três pessoas de condições morais e intelectuais elevadas. Prevaleceriam os preconceitos sociais, com todas as suas conseqüências, lançando a desonra sobre os três e suas famílias. Mas é necessário reconhecermos que em condições inferiores o móvel do caso poderia ser também inferior. A pergunta de Rupert a Jullie não caberia numa situação de atração amorosa puramente física e a resposta dada não teria nenhuma garantia de veracidade. Isso demonstra que as variações sociais da Moral tem seus fundamentos em condições evolutivas nas quais o instinto de conservação social estabelece, através dos costumes, os seus próprios dispositivos de segurança. E por isso, por sua vez, justifica a situação atual da Terra como um momento de transição, em que todos os problemas humanos estão submetidos a um processo de aceleramento na evolução do homem. A consciência humana se abre para as novas dimensões do real. O pivô da consciência se desloca para nova posição, modificando as perspectivas da sua visão do mundo. É natural que ao lado das mutações necessárias surjam excessos de toda ordem. Há consciências que resistem às mudanças, apegadas por milênios a condicionamentos que parecem irremovíveis. As reações são tanto mais violentas quanto maior o apego dos que reagem aos seus condicionamentos. No tocante à sexualidade, as energias desencadeadas transbordam de todos os canais a que até agora se mostravam dóceis e obedientes. O. Amor, até agora aviltado pelas pressões do fanatismo e da hipocrisia, avilta-se num clima de libertação que cai na libertinagem e na pornografia. Nunca tivemos, na Terra, uma situação geral tão profunda e vastamente conflitiva. Somos, por isso mesmo, solicitados a um esforço quase sobre-humano para tentar colocar todos os problemas em equação de maneira corajosa e, às vezes, até mesmo temerária. Do nosso comportamento em face dessa problemática assustadora dependem as soluções que determinarão o novo plano consciencial que atingiremos.

Na remota Suméria, sexualidade era encarada como a efusão divina que empolgava homens e mulheres na povoação do mundo. O culto fálico, a nudez, a natureza sagrada do ato sexual, a reverência para a mulher prolífera eram elementos fundamentais da consciência. Restos de monumentos e templos revelam a adoração do sexo, as procissões de religiosos nus, a prática do ato sexual na área sagrada dos altares e na presença de sacerdotes. Em quase todo o Oriente a sexualidade se apresentava como a própria essência da religiosidade. Ainda hoje existem os resíduos de práticas eróticas nos países orientais com finalidade religiosa. A tradição das gueixas japonesas, ainda vigente, mostra o cuidado e o aprimoramento das técnicas de preparação do ato sexual, especializando-se as jovens numa cultura específica para serem uma espécie de sacerdotisas do Amor. No Egito, na Mesopotâmia, na Pérsia e na Grécia antigas a sexolatria dominou amplamente, com o culto de danças, cânticos e rituais eróticos, geralmente acompanhados da utilização de alucinógenos. Em Roma se passava o mesmo. As Epístolas ao Apóstolo Paulo revelam a infiltração dessas práticas nas primeiras comunidades cristãs. Na própria Israel das leis de pureza, como vemos nos textos bíblicos, o erotismo sagrado dominou sob várias formas. Na Idade Média, os demônios infestavam conventos e mosteiros, os incubos e súcubos (espíritos diabólicos) invadiam os leitos dos religiosos e religiosas. Os Libertinos medievais formavam suas sociedades eróticas.

A própria concepção do homem como um horizonte, que por seus membros e órgãos inferiores se ligava à Terra, e por seus membros e órgãos superiores se liga ao Céu, mostra-nos a constante relação do Amor com a sexualidade no plano religioso. Não é, pois, de admirar ou de estranhar a explosão atual da licenciosidade e da pornografia, da toxicomania e intensificação da violência. Durante milênios cultivamos essas práticas na Terra, com requinte e paixão. Quando se mexe o caldeirão, para tentar uma nova estruturação da vida, é natural que os pesados resíduos aflorem à superfície. Cabe-nos apenas agir com prudência e coragem, para não aumentarmos a carga de iniquidades no planeta ao invés de aliviá-la. Conseguindo uma compreensão mais exata do Amor superaremos a crise.